A Boneca sem Cabeça
24, junho, 2007 at 12:32 pm Deixe um comentário
Sentiu uma zonzeira e abriu os olhos a custo. A visão começou a desembaciar e um gosto ácido veio à boca. Estava deitada no chão e, na tentativa de reorganizar as idéias, balançou a cabeça algumas vezes. Nada. Não se lembrava da queda ‑ se é que havia caído ‑ tampouco identificava algo ou alguém familiar por perto; ouviu um ruído irritante e contínuo que a fez sentir-se mal. Tentou esquecê-lo ‑ definitivamente não era o seu maior problema àquela altura ‑ mas o som entrava pelos ouvidos e a enjoava.
Situação estranha acordar em um lugar desconhecido, sem saber como havia ali chegado. Fora a mão dolorida, sentia-se bem. Ao que lhe constasse, não sofria de desmaios ou males súbitos. Situação estranha.
Procurou uma posição mais confortável, sem ainda se aventurar a ficar em pé. Sentou-se e por ali ficou, com as pernas cruzadas, mesmo porque em pé, sem saber para onde ir, só lhe restaria sentar novamente.
‑ Pense! – ordenou a si mesma, mas o ruído irritante a perturbava, dificultando o raciocínio. Queria silêncio, precisava de respostas, mas só sentia um vazio que pesava na sua cabeça. Olhou à frente buscando um caminho, mas as árvores do parque eram paredes de um labirinto sem saída.
Concluiu que não sairia daquela sozinha; precisava de ajuda. Vasculhou os bolsos a procura de um telefone celular, sem ainda estar certa de a quem telefonaria. Nada encontrou, pelo menos nada que lhe fosse útil, pois, por mais confusa que estivesse, sabia que um punhado de moedas e alguns papéis amassados não a tirariam daquela agonia. A opção era gritar e torcer para que alguém a ouvisse. Gritar e chorar.
Chorar… Sim, um choro; o som irritante era um choro, um choro de criança. Voltou-se para trás, na direção do som, e deparou-se com uma menina.
A menina a fitava assustada e confusa. Parecia perdida e imobilizada pelo medo. Queria correr, mas tinha que ficar ali, para não deixar sua mãe furiosa.
‑ Qual o seu nome? Está perdida? Onde está sua mãe?
O choro intensificou-se. Soluçava, trazendo sob um braço uma boneca sem cabeça e nas mãos a cabeça decepada. Tinha uns quatro anos, idade mais do que suficiente para entender suas perguntas e respondê-las. Mas ela se limitava a chorar. E como chorava!
‑ Que inferno!
Pelo menos já sabia que gritar de pouco adiantaria. Se não acudiram essa criança que berrava a plenos pulmões não seriam seus gritos que surtiriam efeito. Levantou-se resignada. Pegaria a criança pela mão e sairia por aí, sabe lá Deus em que direção, buscando alguém. Com sorte encontraria os pais da criança. Diria “Conhecem essa menina? É sua filha? Pronto, toma. Encontei-a por aí vagando. Estava assustada, coitada, não parava de chorar. A propósito, sabem como faço para chegar à minha casa?”.
‑ Querida, pode parar de chorar. Venha, vamos encontrar seus pais. – Disse docemente, estendendo o braço para que a menina pudesse pegar na sua mão. Mas, para sua surpresa, a garota recuou dois passos, encolheu os braços sobre o peito e, como se isso fosse possível, apertou o choro. A enxurrada de lágrimas se misturava com o muco que corria do nariz e o caldo resultante melava o rosto e pingava grosso sobre o vestidinho florido.
‑ Vamos. Não precisa ter medo.
Berros.
‑ Chega. Também estou em apuros.
Urros.
– Fica quieta! Não aguento mais esse choro!
Soluços.
‑ Cala a boca! – Gritou irritada e tentou agarrar à força a garota, que reagiu se debatendo enlouquecida.
Aquilo era demais para alguém que mal sabia quem era. Com que direito aquela criança insolente negava a ajuda de quem tinha problemas mais sérios que uma mãe perdida ou uma boneca quebrada? Descontrolou-se por um momento e, como aquela orquestra desgovernada teimava em tocar descompassada e desafinada, deu um tapa no rosto da garota.
De repente, entre o desferimento do golpe e o impacto, lembrou-se:
‑ Marina, minha filha!
Lembranças invadiam seu cérebro com a força do ar que adentra uma aeronave quando uma janela se rompe. Relembrou do passeio no parque com Marina e como a menina ficara quando a cabeça da boneca nova fora arrancada por acidente. Tentara acalmá-la, compraria outra boneca, não havia razão para desespero.
Viu sua menina cambalear para o lado com a força da agressão e não entendeu como pôde ferir alguém a quem amava tanto.
Marina silenciou-se por um segundo, meio que engasgada pelo choro, meio que assustada pelo tapa que levara. A mulher percebeu que ela recuperava o fôlego e que em breve choraria novamente.
Tomada pela culpa e pela covardia, a mãe atirou-se ao chão, envergonhada. Pouco a pouco sua mente foi se esvaziando. Dormiu aliviada e acordou alguns segundos depois.
Sentiu uma zonzeira e abriu os olhos a custo.
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